O trauma de ser ouvido: por que a escuta verdadeira nos obriga a rever quem acreditávamos ser
Há quem suporte ser rejeitado, traído, ignorado. Mas não suporte ser escutado. Não com atenção. Não com profundidade. Não com aquele tipo de escuta que atravessa as palavras e toca o núcleo oculto do discurso — onde mora o que não foi dito, o que se quis calar, o que jamais se ousou sentir com inteireza. A escuta verdadeira não consola. Ela confronta. Não valida. Desmonta. Não responde. Exige. E é por isso que, no fundo, há tanta gente que foge de ser escutada: porque ser ouvido de verdade obriga a deixar de ser o personagem que construiu para sobreviver.
Em uma cultura ruidosa, marcada pela autoexpressão performática, fomos ensinados a falar. A nos posicionar, nos justificar, nos explicar. Mas poucos aprenderam a sustentar o que é revelado quando alguém realmente nos escuta. Porque esse tipo de escuta não busca compreender. Busca implicar. Ela não oferece respostas — oferece um espelho, desses que não distorcem nem enfeitam, apenas devolvem a imagem crua de um sujeito que ainda não sabe o que fazer com aquilo que sente.
Na clínica, a escuta é um dispositivo de deslocamento. Quando um paciente fala e se escuta sendo escutado, algo se quebra. A armadura da narrativa se racha. E aquilo que antes era vivido como evidência se revela construção. A frase “eu sempre fui assim” se dissolve. E o que emerge é um sujeito dividido, ambíguo, inconcluso — finalmente vivo. Mas esse desmonte não é agradável. Ele fere. Porque exige um tipo de maturidade que não é racional, mas afetiva: suportar não saber mais quem se é.
Lacan já dizia que a verdade tem estrutura de ficção. Mas o que ele não disse — ao menos não assim — é que a escuta desorganiza essa ficção. E o sujeito, exposto à escuta, precisa encontrar uma nova posição diante de si mesmo. Uma posição onde não se é mais a vítima nobre, nem o herói ferido, nem o justo incompreendido. Apenas alguém que, pela primeira vez, escutou o que estava além do próprio discurso. E isso basta para deslocar uma vida inteira.
É aqui que este ensaio deveria travar. Porque o que vem agora exige coragem. E se você estiver fugindo das pessoas que realmente te escutam? E se suas amizades forem feitas com quem te ouve apenas até certo ponto — o ponto em que sua dor ainda pode ser glorificada, mas não atravessada? E se você só suportar a escuta que confirma sua narrativa, mas não a que te convoca a abandoná-la?
A verdade é que há um tipo de escuta que opera como corte. Quando alguém nos escuta com presença, sem tentar consertar ou interpretar, o que resta é o vazio entre o que dissemos e o que sentimos. Nesse intervalo, aparece o real — aquilo que não pode ser narrado sem riscos, sem perdas, sem luto. Por isso tanta gente fala muito, mas não diz nada. E tanta gente diz tudo, mas não se escuta. Há conforto em se repetir. Há terror em se rever.
A escuta verdadeira é sempre transgressora. Porque ela exige ética. Não a ética da empatia superficial, mas a ética da presença afetiva: estar com o outro mesmo quando ele não sabe mais quem é, mesmo quando suas palavras vacilam, mesmo quando o silêncio começa a falar mais alto que o discurso. Esse tipo de escuta não está interessada em resolver — está interessada em sustentar. E é justamente por isso que ela cura.
Mas quase ninguém quer ser curado de fato. Porque a cura, aqui, não é desaparecer do sofrimento — é deixar de viver com ele como identidade. É dizer adeus ao próprio personagem. É olhar para si com estranheza. É admitir que por trás da dor havia também desejo. E por trás do desejo, culpa. E por trás da culpa, liberdade. E não há nada mais insuportável que a liberdade para quem se habituou a existir apenas como sintoma.
Como se abrir à escuta verdadeira — mesmo quando ela fere:
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